quarta-feira, 9 de abril de 2014

De volta ao geocentrismo



(Teoria de Tudo - Folha) EM ALGUM MOMENTO da existência da editoria de Ciência desta Folha, por volta da virada do século, recebemos a interessante carta de um leitor que, em mensagem escrita de próprio punho, apresentava uma teoria com potencial para abalar toda a ciência. Na carta de português empolado, o missivista declarava ter descoberto que… Galileu Galilei estava errado e, na verdade, é o Sol que gira em torno da Terra, e não o contrário.

O texto da carta era tão incrível que o editor que ocupava o cargo na época o afixou na parede. Lamentavelmente, durante uma reforma na redação do jornal, a parede foi derrubada, e essa relíquia se perdeu. Hoje, quando conto essa história para colegas, eles olham para mim com aquela cara de “ah, tá bom, então”, de quem acha que eu estou inventando coisa.

Felizmente (ou infelizmente), para provar que ainda existe gente adulta que não entende a organização básica do Sistema Solar, acaba de ser anunciada nos EUA a estréia de “The Principle”, um documentário defendendo a ideia do geocentrismo.

O filme é uma piada involuntária, claro, mas não duvido que conquiste alguns incautos, dada a quantidade de gente que acredita em qualquer coisa. Não poderia faltar no filme claro, uma dose de teoria conspiratória: “a Nasa está tirando do ar páginas de sites com pistas e evidências para o geocentrismo”, diz o trailer (veja vídeo acima).

Essa peça de apresentação meio confusa, porém, mostra o documentário menos como um filme sobre o Sol estar girando em torno da Terra do que sobre o chamado “princípio antrópico” (daí o título). Esse é o nome dado à ideia geral de que o Universo foi criado com a intenção de produzir humanos conscientes.

Princípio antrópico e geocentrismo, claro, são coisas diferentes. É a diferença entre debater uma ideia pseudo-científica mal fundamentada e debater uma ideia tão absurda que não faz sentido para mais ninguém desde 1632.

Mas, há motivo para suspeitar que o filme, produzido pelo teólogo Robert Sungenis, esteja sim, contestando o beabá da astronomia. Além de o palavrão “geocentrismo” ser mencionado abertamente no trailer, Sungenis é um apóstolo de longa data do geocentrismo ptolomaico, que defende em seu blog. E também é campeão de outras ideias que, por educação, eu chamaria apenas de imbecis. Entre as tese que defende está a de que o Holocausto foi uma mentira.

O maior absurdo cometido pelo filme, porém, não é o de disseminar um conceito completamente errado com motivações religiosas torpes. O que realmente surpreende é ele ter usado para isso entrevistas de cientistas sérios como Michio Kaku, Max Tegmark, Lawrence Krauss e George Ellis.

A julgar pelo que Krauss descreve em seu blog, as declarações dos cientistas foram incluídas no filme sem que os entrevistados soubessem qual era a tese defendida pelo produtor. No trailer, o resultado é um mosaico de citações fora de contexto (Kaku diz, por exemplo, que a cosmologia está em crise), fazendo parecer que cientistas notáveis endossam o que Sungenis tem a dizer.

Por fim, eu queria terminar esse post recomendando aos leitores que não assistam o filme, mas confesso que agora eu mesmo estou curioso para vê-lo. Deve ser um notável exemplo de quão longe vai a estupidez humana.
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E mais:
Capitã Janeway pede desculpa e diz que foi enganada (AstroPT)

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