sexta-feira, 25 de junho de 2010

Céticos de meia-tigela

(Marcelo Leite - Folha) Um dos assuntos mais discutidos aqui no Fórum de Mídia Global, organizado pela Deutsche Welle (variante alemã da BBC), tem sido como lidar com os chamados "céticos" do aquecimento global antropogênico (causado pelo homem). Jornalistas de ciência e ambiente, maioria do público no evento, se confessam exasperados com a desmedida projeção alcançada pelos profissionais da dúvida.

Uma das conclusões é que eles já começaram a ganhar mais atenção do que lhes é devida ao se tornarem conhecidos como "céticos", coisa que a rigor não são. Eles têm certeza de que o aquecimento global antropogênico (AGA, para encurtar) não existe.

Ou, se o AGA existe, têm certeza de que é negligenciável. Ou, então, de que o AGA não afeta o clima da Terra mais do que as variações naturais do clima. Ou, ainda, de que o AGA pode ser positivo para a humanidade, de que nada se pode fazer contra ele, de que é uma conspiração de países ricos para impedir o desenvolvimento dos pobres, de que é uma conspiração dos pobres para arrancar dinheiro dos ricos, para prejudicar a competitividade da economia americana...

Numa palavra, eles vivem de levantar dúvidas --na cabeça dos outros. Não mereceriam, por isso, ser chamados de "céticos". O correto seria denominá-los "contrários", ou "negacionistas". Céticos de verdade são, ou deveriam ser, os cientistas e os jornalistas, cujas atividades poderiam bem ser descritas como ceticismo organizado.

A maior paulada na reputação dos negacionistas, contudo, não partiu de Bonn. Está num artigo publicado ontem no periódico científico "PNAS", da Academia de Ciências dos Estados Unidos. Nele, quatro pesquisadores das universidades de Stanford (EUA) e de Toronto (Canadá) mostram que as credenciais científicas dos contrários são pífias.

O instrumento principal da investigação foi o Google Scholar (ou Google Acadêmico, no Brasil). Como primeiro passo, os pesquisadores relacionaram 1.372 autores de artigos e relatórios científicos sobre clima e também signatários de manifestos e abaixo-assinados a favor ou contra o AGA.

Com o Google, contaram quantos trabalhos cada um escreveu (variável que chamaram de "expertise"). Contaram em seguida quantas citações receberam os quatro trabalhos mais citados de cada um (uma medida de "proeminência", ou reputação, uma vez que outros cientistas só citam trabalhos que avaliam como bons).

Adotaram, então, o critério de que, para ser considerado especialista em clima, a pessoa precisava ter publicado ao menos 20 trabalhos sobre o tema. Isso reduziu a lista para 908. Aí dividiram o grupo em duas categorias, tomando por base o conteúdo dos artigos e dos manifestos: a dos convencidos do AGA e a dos não-convencidos.

Apenas um dos contrários figura no grupo dos 50 mais bem colocados por expertise. São três no contingente dos cem que mais publicaram e apenas cinco entre os 200 melhores, nesse quesito. Por outro lado, no aspecto de proeminência, os convencidos do AGA obtiveram em média 172 citações para seus quatro trabalhos principais, contra 105 dos negacionistas. Ou seja, 2 a 0 para o time do aquecimento.

O importante desse trabalho está no fato de a derrota se dar no campo científico, não no tapetão. Um coisa é capturar a atenção de jornalistas e formadores de opinião que não acompanham bem o assunto. Outra, bem diferente, é convencer os próprios colegas de profissão de que suas evidências e interpretações são as melhores e mais corretas.

"A conclusão básica é algo que todos no campo sabiam, mas ninguém até agora tinha se lançado a demonstrar de maneira 'científica' ", disse em Bonn Naomi Oreskes, da Universidade da Califórnia em San Diego. Ela é historiadora da ciência, especializada nas controvérsias como a da mudança do clima, e participou de um das muitas mesas do Fórum Global de Mídia a debater a questão dos céticos.

O artigo no "PNAS", de William Anderegg, James Prall, Jacob Harold e Stephen Schneider, contudo, já está também ele causando controvérsia. A escolha de apenas duas categorias, convencidos e não-convencidos, acaba pondo no mesmo saco atitudes muito diferentes.

Pesquisadores que aceitam o AGA mas questionam medidas para combatê-lo, por exemplo, foram classificados como não-convencidos. Ora, discordar de políticas derivadas de avaliações científicas é bem diferente de negar os próprios resultados científicos. Esta parece ser a principal objeção ao estudo colhida por Eli Kintisch em reportagem para o boletim "Science Insider".

Salvo engano, essas críticas não chegam a ameaçar as conclusões principais do trabalho: os contrários não são os mais produtivos nem os mais reverenciados pesquisadores do clima. Quem está próximo da área sabe disso, mas nem sempre os árbitros estão bem posicionados para marcar o impedimento.

Isso não exclui em definitivo, é óbvio, que o processo de crítica e aceitação de artigos científicos --a sacrossanta revisão por pares ("peer review")-- possa falhar. Nem, tampouco, que possa estar enviesado contra visões minoritárias, ou até mesmo sendo manipulado para excluí-las. Acredite nessa teoria da conspiração, ou conspiração teórica, quem quiser.

Nas regras da ciência, porém, quem questiona tem de apresentar dados e interpretações mais robustas que as existentes. Duvidar é bom, mas provar-se correto é melhor.

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